quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Entrevista: Chico Buarque


"Eu teria de mudar a minha vida inteira.” Chico Buarque está com o olhar perdido em direção ao chão da sala de sua cobertura, no Alto Leblon, no Rio de Janeiro. Ele não se refere a música ou política, mas a um terceiro elemento sempre associado à sua imagem pública: o futebol. Aos 67 anos, ele sente dores nas costas; em uma consulta, recebeu a notícia de que não poderia mais jogar nas partidas de seu time, o Polytheama. “Mas consultei outro médico e ele me disse que exatamente porque faço esse exercício eu não precisaria parar”, diz.


As declarações deixam óbvia a importância do futebol na vida do artista, mas também puxam o ambiente para um universo além-arte. Nesta tarde de agosto, ele está disposto a falar sobre qualquer tema, sem limitação de tempo – uma oportunidade rara com um astro notoriamente avesso a ações promocionais. Atualmente, as chances de se cruzar com Chico em eventos sociais estão entre a de ser atingido por um raio e a de não encontrar um ex-BBB em uma festa open bar.


O apartamento é espaçoso, decorado discretamente. Em uma sala, um piano e um violão se encontram ao lado de um computador Macintosh. São instrumentos da alternância que ele mantém desde os anos 90, revezando o trabalho entre a literatura e a música. Agora, ele é o Chico Buarque compositor, que lançou Chico (o primeiro disco de estúdio desde 2006) e está imerso no processo da nova turnê (que deve começar em Belo Horizonte em novembro e passará pelas principais capitais).


Entre sorrisos e gargalhadas – ao perceber um assunto familiar, um meio sorriso surge; ao se empolgar com uma resposta, gargalha até perder o fôlego –, o músico revela à Rolling Stone Brasil um retrato preciso de como se encontra em 2011: calmo (mas não conformado), incisivo (e às vezes inseguro), mas jamais lacônico ou desinteressante. Após cinco décadas de atividade artística, Chico Buarque de Hollanda está pronto para mostrar seu lado humano sem hesitação ao caminhar pelo espaço reservado somente às lendas.


Você é conhecido por ser metódico no trabalho. E na vida cotidiana, também? Você se permite decisões espontâneas ou mantém o controle? 
Eu não sabia que tinha fama de metódico. Na verdade, minha vida e meu trabalho se confundem, nem eu mesmo sei direito quando estou trabalhando ou não. Às vezes digo que estou muito atarefado, porque as pessoas pensam que um artista está sempre disponível para ir à festa. Como o artista em geral não tem horário, não dá expediente, costumam pensar que é vagabundo. Mas, assim como a criança se concentra num brinquedo, tem dias em que preciso me concentrar no trabalho, nem que seja compor um palíndromo ou inventar times de futebol.


Quando se propõe a fazer um disco, o processo de compor só começa quando você determina? 
Não é nem um pouco regrado. O que acontece é que, hoje, compor se tornou um ato tão rarefeito que a cada vez que faço uma música me lembro exatamente – eu sei a história de cada composição, porque é um momento especial. É normal para qualquer compositor, qualquer criador, perder aquele entusiasmo juvenil com o [passar do] tempo, aquela exuberância criadora toda. Vai se tornando um criador mais seletivo.


A imagem romântica do artista tem mais a ver com inspiração: você está na padaria, baixa a inspiração e escreve a letra. As pessoas não pensam que fazer música é um esforço consciente. 
É e não é. Tem algo de mágico, algo que corresponde a essa ideia romântica. Porque você não faz a música quando quer, você não escreve e tem uma boa ideia quando quer. Agora, você tem que estar disponível para as ideias surgirem. A centelha que desencadeia a música continua tendo um certo mistério. A partir daí, o trabalho é trabalho. Você tem uma técnica, tem uma experiência. Dificilmente você vai escrever na padaria, mas pode, por exemplo, fazer isso caminhando. Muitas das minhas caminhadas são de trabalho. Vou caminhando e pensando em como desenvolver melhor uma música. Mas criar... eu preciso de um instrumento para criar, eu preciso do violão. Agora, a letra: posso andar com uma maquininha dessas, um fone de ouvido, ouvindo aquela música e desenvolvendo numa caminhada ou até mesmo na padaria. Estou o tempo todo a serviço dessa música. Se estiver num restaurante conversando, posso ter uma ideia que vai me tirar daquela conversa e me levar de volta para a minha música. É um pouco as duas coisas.


Em seu período de dedicação à literatura, a música – não como ofício – continua presente? Por exemplo, ouvindo música dos outros? 
Não, não. Eu não ouço música. Na verdade, ouço pouca música. Escrevendo ou não escrevendo, ouço pouca música. Recebo um disco de um autor ou de uma cantora que me interessam, coisas que me recomendam. E é assim: ponho o CD no carro, que é o lugar onde mais ouço, e escuto aquilo. Quando você está escrevendo, criando, parece que é um choque! As coisas que entram, batem e saem. Quando estou escrevendo um livro, não tenho o menor interesse por música, fico inteiramente fora. Períodos como este agora: aí, sim, estou aberto a tudo e ouço coisas que aparecem.


A partir dos anos 00, sempre que vai explicar um novo disco, você diz: “Eu andava meio parado com a música”. Você já se considerou inseguro em relação a isso? Parece que existe um esforço consciente seu. 
Sim, porque sair da inércia é complicado, tanto para a música quanto para a literatura. Quando eu me disponho a entrar na fase musical, requer um esforço. Não é do nada que aparece, não é assim. Tem que buscar. Minha primeira sensação, quando pego o violão depois de um longo tempo, é a de que não sei mais como se faz uma música. Eu não tenho ideia de como se compõe. É como se fosse um instrumento alheio, como se não me dissesse respeito. É um momento de quase flerte com a música, de procurar me reaproximar. Então pego o violão e começo a tocar: “Que diabo é isso? Pra onde vou?” Ou então os acordes já vêm na sequência que vinham antes, começam a se repetir e tocar quase que mecanicamente. Até voltar a dominar aquilo leva um bom tempo. Quando vou escrever um livro, é a mesma coisa. É um exercício, que se tem que fazer até se sentir dentro da coisa.


A expectativa a respeito de suas músicas é sempre alta. Essa pressão chega até você? 
Eu não posso me deixar levar por isso. E não adianta você querer matar um leão por dia, porque as pessoas sempre vão dizer que o leão antigo era melhor e mais forte do que o de hoje [risos]. Mas não é isso que vai me estimular. Existe uma pressão interna, sim, uma necessidade e um prazer grande em fazer uma música. Essa possibilidade de alternância é saudável, porque ninguém está esperando um disco novo meu daqui a um ano: nem eu, nem ninguém. Tem esse tempo todo agora, lento e de maturação. Escrever um livro provavelmente – e isso não precisa ser tão mecânico – vai tomar um longo tempo. Então, não acho que a gente deva se levar por esse tipo de pressão. Não tenho contrato com gravadora, não tenho obrigação nenhuma e já é suficiente a pressão que a gente exerce sobre si próprio.


Hoje se vendem menos discos. Faz diferença? 
Não, para mim não faz. Tanto é que eu fiquei sabendo mais ou menos dessas novidades durante as conversas de lançamento do disco. Então me foi apresentado um projeto de lançar o disco pela internet e eu não conhecia nada disso. E aí eu fui conhecer a realidade do mercado. Eu andava longe disso havia cinco ou seis anos e não sabia que tinha mudado tanto assim. A previsão do lançamento de um disco é, em termos numéricos, muito inferior agora. Então, tentei compensar a gravadora, de certa forma, pelo investimento que ela fez, colaborando no projeto de lançamento deles. Internet e aquela coisa do site e tal. Mas isso não é assunto meu. Eu, na verdade, cheguei a uma altura da vida que não preciso mais do disco para sobreviver. Eu já tenho basicamente aquilo que eu preciso, não tenho grandes ambições. Já tenho certa estabilidade financeira e não preciso ficar muito preocupado com isso. Meus discos vendem direitinho, tenho direitos autorais aqui e lá fora. Os livros vendem mais do que os discos, inclusive [risos]. E os livros são vendidos lá fora. Não tenho essa preocupação.


Como estão os planos para a turnê? 
Quem está vendo isso é o pessoal da produção, porque fazer um show hoje em dia... Para me sentir confortável no palco, vou querer chamar meus músicos, meus amigos com quem eu já me dou bem. As músicas são novas, os amigos não precisam ser novos, são os velhos mesmo. Para montar isso tudo é uma estrutura grande. Precisa de patrocínio. Vou precisar de um mês, talvez mais, para ensaiar. Para pagar isso, tem de fazer praticamente uma temporada de pelo menos um ano para viabilizar. O pessoal que mexe com isso está procurando uma maneira de viabilizar economicamente esse show. Isso passa por patrocínio e, evidentemente, um patrocínio de um show meu não pode contar com isenção fiscal, com Lei Rouanet, com nada disso. Senão, seria mais fácil [risos]. Mas mesmo no meu último show eu não tinha isso.


Por opção? Porque você prefere? 
Hoje eu nem poderia porque acontece, por acaso, que a minha irmã é a ministra da Cultura. Mas o último show já era, se não me engano, o governo Lula. Gil era o ministro da Cultura e achei melhor não entrar com patrocínio via Lei Rouanet. Mas isso dificulta. Você sabe disso, né? Não é qualquer empresa que vai querer simplesmente associar o nome a um artista sem poder abater no seu imposto de renda e tal.


A Lei Rouanet é uma questão peculiar para artistas do seu tamanho. As pessoas parecem não entender direito como ela funciona. 
Parece que não há muita boa vontade em deixar claro, para o grande público, o que é a Lei Rouanet. Sempre se passa essa ideia de que o governo está bancando um artista, de que o Ministério da Cultura está financiando um filme, uma peça, um show de artista famoso. O Ministério, pelo contrário, patrocina justamente quem não tem acesso à Lei Rouanet. Ela permite que o artista busque patrocínio na iniciativa privada, mediante isenção fiscal. Não cabe ao Ministério julgar se o artista precisa ou não de alguma ajuda pessoal, cabe a ele julgar o mérito do projeto apresentado. Há quem seja contra porque acredita que o Estado não deve dar incentivo algum às artes e à cultura. É um ponto de vista. Eu nem queria entrar muito nesse assunto. Estou entrando assim, de raspão, porque desde que minha irmã foi nomeada ministra eu me sinto impedido de opinar. Até fico fora do assunto de direito autoral para não parecer que eu tenho alguma coisa a ver com isso. Para mim é um incômodo ter uma irmã no Ministério da Cultura.


A Ana de Hollanda foi criticada por ter uma postura em relação aos direitos autorais que foi considerada um retrocesso em relação aos ministros anteriores. Você tem opinião sobre isso? 
Não tenho e me mantive alheio a esse assunto. Exatamente porque desde o início tentou-se passar a impressão de que eu teria alguma ingerência na nomeação da minha irmã como ministra. Para mim, o mais confortável era que o Juca Ferreira continuasse sendo ministro. Até mesmo para que as pessoas xingassem o Juca Ferreira e não a minha irmã nos jornais [risos]. Quando entra esse assunto de direitos autorais, volta e meia sou procurado, recebo e-mails e tal. Digo: “Prefiro não me interessar por isso”. São tantos assuntos pelos quais a gente tem de se interessar, tantos jornais que a gente tem de ler, tantas notícias que a gente tem que ficar por dentro, que eu prefiro deixar esse de lado. E há colegas meus que estão brigando, discutindo isso com muito mais conhecimento de causa do que eu. Prefiro não opinar. Nem sei direito o que é o Creative Commons, o que isso deixa de ser. Eu sei que o selo foi tirado do [site do] Ministério. O que isso representa, eu não sei.


Continuação da entrevista: 
http://rollingstone.com.br/edicao/edicao-61/entrevista-rs-chico-buarque

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