terça-feira, 7 de agosto de 2012


Um homem chamado Caetano
70 anos de Caetano Veloso


A plateia parece estar no cio. Lotação esgotada. São três mil pessoas em pé, mais ou menos uniformemente divididas entre homens e mulheres. A maior parte parece ainda não ter chegado aos 25 anos, mas há também senhores com mais de 60. E adolescentes de 15, 16. É quinta-feira, 5 de julho, estou no Ginásio do Sesc de Santos (SP). Cada vez que o artista lá no palco, passeando pelos versos de suas novas e antigas canções, atravessa uma palavra carregada de alguma carga sexual, o público reage com gritinhos lascivos. Todos ao mesmo tempo, em uníssono, como se também tivessem ensaiado.

Estamos em plena turnê de Cê, o álbum “roqueiro” de Caetano Veloso. Álbum “roqueiro”? Se esse rótulo não é abrangente em medida suficiente para definir a sonoridade de Cê, muito ele pode dizer a respeito do conteúdo poético do disco (e desse show que dele se originou), tomado principalmente por sexo e ódio (ou seu par perfeito, o amor). Pode também explicar muito sobre esse reflorescimento sexual à volta de Caetano – o artista, o homem – que, neste mês de agosto, completou 65 anos. “O Caetano está em uma fase meio Beatles. Tem rolado um assédio, uma loucurinha”, comenta o guitarrista Pedro Sá, o mais velho dos três jovens músicos que dividem o palco com o cantor. “Nas outras turnês que fiz com ele sempre teve fã, gente que assediava, que chegava, que queria falar. Mas agora, além disso, tem um frisson, um faniquitozinho. Mulher que agarra, que pega, que quer tirar a roupa, que quer comer. Que perde a linha mesmo”, conta.

Não é à toa. Cê é o trabalho no qual Caetano mais se expõe sexualmente em toda sua carreira. Se não isso, desde pelo menos o começo da década de 1980. “Desde o [disco] que tem ‘Vera Gata’, eu acho”, tenta pontuar o próprio artista. Composta para Vera Zimmerman, a canção a que ele se refere está no álbum Outras Palavras (1981) e descreve a história, imagina-se que real, de sua “rápida transação” (como o próprio diz na letra) com a atriz. Sim, estamos falando de sexo. Em Cê, com Caetano na casa dos 60, a transação não precisa ser tão rápida. Em alguns momentos chega a ser delicada, minuciosa, muito mais poética – mas nem por isso menos erótica. Irmã caçula de “Vera Gata”, “Um Sonho” foi composta para Luana Piovani e descreve a história, não necessariamente real (principalmente se levarmos em conta o significado onírico de seu título), de seu “malho” (como o próprio diz na letra) com a atriz. Enquanto mostra a canção no palco, Caetano desenha com o gestual do corpo uma relação sexual inteira. “Sexo é um assunto central, um absoluto – não um tema entre outros. Para mim, para a minha vida, essa é a importância que o sexo sempre teve. Não tem nada a ver com ser atleta sexual, nem obcecado por sexo. Pelo contrário: reconhecendo que é um absoluto, o sexo basta que se dê. É muito simples. Porque é o que é. Não precisa muita coisa. Tendo aquele negócio, pronto. Rolando, chegando lá, já é importante”, avalia.

O artista diz não saber detectar diferenças entre o ato de criação de um disco “sexual” quando ainda se está na casa dos 30 anos e fazê-lo agora, aos mais de 60. E explica suas razões para recorrer ao tema com tanta sede neste momento. “Queria criar uma banda de rock que tivesse um som próprio, que desse um toque relevante para o panorama de criação de rock no Brasil do ponto de vista sonoro e estilístico. Timbrístico, também. E isso se deu. Nesse ponto, acho que fomos 100% bem-sucedidos”, afirma. “E precisava fazer um repertório que se adequasse a isso. O rock tem, desde o princípio, esse componente sexual quase como tema central – mesmo quando não é explicitado. Então, tendi a explicitá-lo em algumas letras. Gostava de estar fazendo canções em que esse tema aparecesse de uma maneira direta e intensa, com poucas informações, poucas imagens, poucas palavras. Gostava de fazer assim para este disco. Acho que a razão é mais essa”, reconhece.

Uma peça importante do mosaico sexual de Cê acabou não entrando no repertório do disco porque não estava terminada na época das gravações, mas entrou no roteiro do show. “Amor Mais que Discreto” foi composta a partir de “Ilusão à Toa”, clássico de Johnny Alf (que Caetano, aliás, também canta no show como introdução à sua), e aprofunda o contexto homoerótico esboçado em “Odeio”. “É linda! Essa daí é mesmo gay. Porque ela fala de ‘o amante do amante’. Eu adorei chegar nessa expressão porque não fica duvidoso, está explícito: é um cara que é, ou pode ser, ou desejaria ser, amante de outro cara. Eu tinha falado com os meninos, até brincando, que o Cê tem muita mulher”, ri.

As duas faixas, “Odeio” e “Amor Mais que Discreto”, abordam o amor (ou o sexo, simplesmente – ou a iminência de uma dessas duas coisas, ou das duas) entre dois homens: um velho e um menino. “Sou velho, então já dá para pensar nessa perspectiva”, diz o compositor. “Aquele modelo grego do homem com o adolescente é um arquétipo na cabeça da gente. E eu, no texto, gosto muito desse momento que diz ‘eu sou um velho, mas somos dois meninos’, que é diferente da nossa moral convencional cristã burguesa. E é diferente também do modelo grego, em que [o sexo entre um homem adulto e um adolescente] era quase que um tipo especial de heterossexualidade. [Em ‘Amor Mais que Discreto’] são dois caras brincando, dois caras curtindo o sexo deles, um com o outro.” Caetano rejeita inteiramente a leitura comum de que a temática gay, uma constante em sua obra desde o início – seja na poética, no discurso ou no comportamento – tenha entrado em cena simplesmente para provocar. “É um tema meu. Não entro em ambiente nenhum sem meus temas principais. Não iria deixar isso de fora”, afirma. “Independentemente de ser ou não relevante para todas as pessoas, a mim esse tema sempre interessou.”

Texto publicado originalmente na edição 11 da Rolling Stone Brasil, agosto/2007.

rollingstone.com.br

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