quarta-feira, 14 de setembro de 2011


Ferreira Gullar, o último dos grandes
O poeta abriu sua casa para uma conversa sobre sua vida e seu trabalho.
Os artistas plásticos que se cuidem.


Sobre Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes disse um dia que se tratava do “último grande poeta brasileiro”. Se, na época, ele não era exatamente o último, hoje não são poucos os que o consideram o maior poeta vivo do país. O maranhense, com sessenta anos de carreira sólida, atravessou ativamente todos os episódios importantes da moderna poesia brasileira. Aos oitenta anos de idade, José Ribamar Ferreira (o Gullar foi uma adaptação do Goulart, de sua mãe) leva uma vida ativa, mas escreve cada vez menos. Faz ginástica e acompanha esportes pela TV. Não tem lido nada novo e diz que a literatura contemporânea não prende sua atenção. “Eu confesso que eu mais releio do que leio. E releio menos do que relia”.

Gullar também é dramaturgo, crítico de arte e ficcionista. Recentemente, a editora José Olympio publicou sua obra completa. Juntas, suas poesias não somam 600 páginas, o que daria dez páginas de produção anual. O poeta se justifica: “Sempre escrevi pouco. Eu não fico forçando a barra, só faço quando é necessário. Não vou fazer poesia ruim como alguns poetas que envelheceram fizeram. Por mim tanto faz, se eu parar de escrever, eu parei, ué. Escrever uma coisa de qualidade inferior só pra dizer que eu continuo escrevendo, não. Meu último poema do meu último livro [Abduzido, de “Em alguma parte alguma”] foi escrito em novembro de 2009. Nunca mais escrevi nada. A minha poesia nasce do espanto, da descoberta, de algo inesperado. Mas depois nada me espantou mais, naturalmente”.

Existe uma certa contradição nos ofícios de Ferreira Gullar. Poeticamente, ele sempre buscou a inovação. Basta imaginar que seu primeiro livro, “Um pouco acima do chão”, hoje renegado pelo poeta, foi feito em versos alexandrinos, com fortíssimo sotaque parnasiano. “Eu chegava a falar em decassílabo”, diz. Depois, com a leitura de poetas modernistas, descobriu o verso livre, sem métrica nenhuma, e entendeu que precisava recomeçar. “Eu tinha realizado uma série de experiências artísticas. Ajudei a criar a poesia concreta, aí rompi com o movimento e o nosso grupo criou o movimento neoconcreto, aí eu fiz poemas espacias, fiz uma porção de coisas que se esgotaram. Chegou num ponto que eu perdi o interesse de continuar fazendo aquilo. Não é que eu reprovasse o que eu fiz, mas não tinha mais vontade de continuar”. Por outro lado, como crítico de arte, Ferreira desaprova muitas vanguardas da atualidade. “Veja bem, sem ter a intenção de negar o que eles fazem, eu só digo que aquilo não é arte. É expressão, mas não é arte. Artes plásticas é uma coisa que, das cavernas até o começo do século vinte, era uma coisa com características definidas. Tanto uma escultura grega do século 4 a.C. quanto um quadro cubista tinham, entre todas as diferenças, características  comuns. Agora, você pega e bota larva de mosca exposta, não tem nada que ver com isso. Pode ser o que for, mas não tem linguagem”.

Ainda a respeito das artes plásticas, Gullar diz que muita coisa boa continua sendo produzida, mas segue espinafrando as vanguardas: “Eles seguem, na verdade, a expressão de Marcel Duchamp que diz ‘tudo que eu disser que é arte, é arte’. Começou lá com o urinol. Então, o que isso significa? Que não é preciso saber fazer, que não é preciso ter características estéticas. Arte implica em saber fazer, em dominar linguagem e inventar significados”. Serve como base de seus argumentos uma exposição recente na Casa França-Brasil, em que lençóis usados por hospitais e motéis do Rio de Janeiro eram pendurados em telas: “Aí tem um texto dizendo ‘o artista distribuiu e depois recolheu esses lençóis’. E daí? E isso é arte? “A noite estrelada” de Van Gogh, você não precisa saber de nada. Você ouve a 5ª de Beethoven, você precisa saber de alguma coisa? Tem que ter um texto do lado do disco do Villa-Lobos?”

Mas ele reconhece que a vanguarda não é negativa. Ela amplia os horizontes, assimila coisas novas e enriquece a produção artística posterior. Mas o único campo em que isso persiste é nas artes plásticas, diz. Para ele, uma possível explicação é que está na moda ser rebelde: “Por que o MoMa [Museum of Modern art] expõe uma série de casais nus? ‘Pra constranger as pessoas’, eles dizem. E a finalidade da arte é essa? Nu, no museu, eu prefiro Davi do Michelangelo, que não me constrange, que me vislumbra. O MoMa é instituição, recebe seu dinheiro, mas ao mesmo tempo ele quer ser rebelde. Instituição e rebelde são duas coisas que não combinam. Se tá instituído, não é rebelde, nego! O museu, então, virou o único lugar onde a não-arte vira a arte”.

Questionado sobre um balanço de sua vida, Ferreira Gullar não pesa nada: “A minha vida é um improviso. Eu não planejo nada. O acaso é um fator decisivo na criação, e na vida. Eu costumo dizer que a relação é acaso-necessidade. Quando você começa a escrever, você tem uma página em branco. Você não sabe o que você vai escrever. Você só tem uma vontade de fazer. Com a página em branco, tudo é possível, a probabilidade é infinita.

Quando você escreve a primeira palavra, você reduz a probabilidade. Ela começa a definir algo, e o acaso é menor. Então a segunda palavra é determinada pela primeira. E aquilo que não era nada começa a nascer e a se tornar necessário à medida em que você vai fazendo. É assim que as coisas são feitas. A vida é inventada, a literatura é inventada, nada é fatal, determinado. Não tem ninguém que tá dirigindo nada, nem destino predeterminando”. E acrescenta: “Nós fazemos a vida dentro das nossas limitações e possibilidades, não é?” Em seguida, diante de seu entrevistador perplexo, o poeta dá o ponto final da conversa com uma risada de quem entende das coisas: “Já tá bom pra você?”.

Por Guilherme Tauil

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